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quarta-feira, 18 de abril de 2012

Recomendações para quem gosta de morrer

Para morrer, é fundamental ser honesto. Recuse qualquer prática corrupta, seja ela federal ou cotidiana. Não se renda à tentação de atirar o lixo no canto da calçada, ainda que a lixeira mais próxima seja o cesto verde-água localizado no canto direito de seu quarto. Improvise-as (as lixeiras) também nos bolsos traseiros de sua calça e esqueça-o (o lixo) nos bolsos quando colocá-la (a calça) para lavar. Informe a bela mulher do horto sobre o troco dado errado, principalmente quando representar prejuízo para a pequena empresa sequer regularizada, que a jovem não tem de sofrer reprimenda de seu chefe rude por uma desatenção momentânea percebida pelo cliente a tempo de manter tudo em ordem nas solitárias praias da Indonésia. A responsabilidade do louvável candidato nunca o fará merecedor do prêmio eterno se não for ridicularizada pelo menos uma vez em sua vida, tanto faz se de forma direta e agressiva ou sutil e adolescente.

É preciso, também, apaixonar-se. Preocupe-se com a dieta alimentar de sentimentos alheios, não ofereça promessas gordurosas e aja sem moderação no consumo compartilhado de doces e demais guloseimas. Prefira aquelas que vão lhe sujar os dedos, de modo que periodicamente eles devam ser vasculhados com a língua a fim de absorver satisfatoriamente todas as possibilidades de gozo presentes na sacarose. Apaixone-se, portanto, para que após certo tempo de consumo dos doces as cáries comecem a latejar por dentro dos dentes, deixando vermelho o entorno da gengiva e o trânsito sanguíneo congestionado. Enfrente, por fim, o consultório impecavelmente branco e submeta sua cavidade bucal à intervenção de uma pequena broca metálica a desenhar nos destroços de seu dente a representação esmaltada da vergonha e do desleixo.

Por último, quem gosta de morrer não deve buscar, em nenhuma instância, a morte. Em vez disso, cabe a este amante da arte de não estar vivo planejar indiscriminadamente, da duração do banho (dividindo o tempo em todas as etapas possíveis, considerando as partes do corpo, seus prolongamentos e suas subdivisões) ao curso de sua vida adulta contando com aposentadoria, iniciação na terceira idade e última semana ao lado da família antes de entregar-se ao repouso sem hora. A orientação mais adequada ao pretendente da morte compreende o bom funcionamento do mecanismo das decepções, cuja manutenção é feita através da lubrificação das engrenagens da esperança e da gratidão. À moda Parmênides, o sistema fará mover a alavanca-mestra do maquinário, apelidada pelos técnicos de "realidade", entretanto em direção oposta a do costumeiramente pretendido (ou seja, a daqueles que gostam de viver). Um erro estratégico desses pode pôr tudo a ganhar e, ganhando, o horizonte daquele que gosta de morrer converte-se em colorida imagem bidimensional típica dos melhores jogos de videogame já fabricados, em que a deliciosa jogabilidade entorpece o juízo e faz com que o jogador se esqueça dos outros, da vida, de si.

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(texto inspirado em contos de "História de Cronópios e de Famas", livro do escritor argentino Julio Cortázar, autor sobre o qual infelizmente não pude falar hoje)

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