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quinta-feira, 8 de março de 2012

Ai que vergonha da Amélia

Hoje, no dia oito de Março de 2012, está para ser sancionado um projeto de lei que aplicará multa a empresas que pagarem um salário menor a mulheres cumprindo a mesma função de homens. Enquanto isso, comemora-se mais um Dia Internacional da Mulher, e comentários de anos anteriores são reciclados: "é uma hipocrisia!", "dia da mulher é todo dia", "por que homem não tem um dia desses?" (em tempo: tem sim, mas é ridículo), "parabéns a todas, suas lindas!!!" (esse é oportunista), etc. Uns citam Madonna, outros Simone de Beauvoir; há quem convoque a Gaiola das Popozudas, ícone do "pós-feminismo-vanguardista-esquerdista-foucaultiano", e há os fronteiriços, trazendo à baila a imagem de Dercy Gonçalves. Felizmente, ainda não vi ninguém falar da Amélia, aquela que "era mulher de verdade". 

Entretanto, como tudo na história da humanidade é cíclico, esquecemo-nos de que a mulher já foi muito mais do que é hoje (doce ilusão da pós-modernidade). Refiro-me às prostitutas, figuras de destaque nas sociedades antigas, mais especificamente no Egito, na Mesopotâmia e na Grécia. Numa época em que à mulher eram negados quaisquer direitos sociais, a prostituta ou cortesã destacava-se de tal modo que lhe eram cedidas as instruções literárias, científicas e políticas, tornando-se portanto participante ativa da vida na comunidade. Só na Idade Média é que a situação inverteu-se e a prostituição passou a ser entendida como prática perversa, condenável, corruptora e tantos outros adjetivos barrocos lhe foram atribuídos pela Igreja Católica.

Atualmente, já conseguiram vencer alguma parcela mínima do enorme preconceito que recaiu sobre sua prática, mas ainda são execradas e incompreendidas. Isso sem mencionar a atenção que dividem com os travestis em um cenário já clássico dos preconceitos que o século XXI ainda tem que superar e da beleza que nossa época permite quanto às possibilidades de ser e se apresentar do humano (Baudrillard vai dizer, em 1990, que a cultura da contemporaneidade aponta sempre para o trans, em todos os aspectos da civilização [vide o genial cartunista Laerte]).

Digna foi a atitude do rapper paulista Emicida ao transformar o videoclipe de "Rua Augusta", música de sua mixtape "Emicídio", em um breve e sofrido documentário sobre o cotidiano de uma prostituta que, mãe de um garotinho, deixa-se flagrar pela câmera entre choros, cuidados maternos e esperas à esquina. Porque é fácil ser feminista empunhando um copo de cerveja enquanto dá uma tragada no cigarro e muito cômodo ser homem (alguns diriam macho) dedicando trinta segundos para elogiar a mesma mulher que na estreita lógica machista não deveria dirigir carros nem empresas, mas quem se importa com o semelhante vivendo à margem imprimindo na pele e na alma a dolorida imagem de alguém que, em outros tempos, seria a única a merecer reconhecimento perante a sociedade?

Fica também outra dica musical, esta mais bem-humorada: o disco "Estudando o Pagode", do incomparável Tom Zé, no qual as letras levam a curiosas e pertinentes reflexões a respeito de como a sociedade brasileira promove um culto velado à misoginia, reprimindo a mulher através de inúmeras justificativas antropológicas sem o menor cabimento.

As prostitutas clamam por dignidade

"Desde criança a mulher
Enfrenta aquela
Dissimulada agressão.
Eram descarados provérbios maldosos,
E duros, naquele tom brincalhão.
E na dureza do escárnio
Se o amor-próprio se parte...

Pode interromper no corpo
Aquela natural vibração da carne,
Gozo da mulher, que se o cara
Não doar atenção - é tarde."
(trecho de Vibração da carne)

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