Já citei o Julio Cortázar por aqui, mas desta vez é o próprio quem se
pronuncia. Se você ler esse trecho do conto "Manual de Instruções" e não
sentir um leve arrepio é porque - vaticino - há algo de errado na sua
vida:
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Julio Cortázar pensando em como fazer para me deixar emocionado |
"E não é mau que as coisas nos
encontrem outra vez todo dia e sejam as mesmas. Que a nosso lado esteja a
mesma mulher, o mesmo relógio e que o romance aberto em cima da mesa
comece a andar outra vez na bicicleta de nossos óculos, por que haveria
de ser mau? Mas como um touro triste é preciso baixar a cabeça, do
centro do tijolo de cristal empurrar para fora, em direção ao outro tão
perto de nós, inacessível como o toureiro tão perto do touro. Castigar
os olhos fitando isso que anda no céu e aceita astuciosamente seu nome
de nuvem, sua resposta catalogada na memória. Não pense que o telefone
vai lhe dar os números que procura. Por que haveria de dá-los? Virá
somente o que você tem preparado e resolvido, o triste reflexo de sua
esperança, esse macaco que se coça em cima de uma mesa e treme de frio.
Quebre a cabeça desse macaco, corra do centro em direção à parede e abra
caminho. Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar de cima nesta
casa, com outras pessoas. Há um andar de cima onde moram pessoas que não
percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de
cristal. E se, de repente, uma traça pára pertinho de um lápis e palpita
como um fogo cinzento, olhe-a, eu a estou olhando, estou apalpando seu
coração pequenino, e ouço-a: essa traça ressoa na pasta de cristal
congelado, nem tudo está perdido. Quando abrir a porta e assomar à
escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não
as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva
onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde
os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco,
quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas
contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto
avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina."
(CORTÁZAR, Julio. História de cronópios e de famas. Civilização Brasileira, 2009)
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