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domingo, 6 de maio de 2012

O Facebook não gosta de artistas

O Facebook não gosta de artistas. Percebo isso toda vez que acesso o perfil de algum amigo que seja da área, ou mesmo de outros artistas brasileiros independentes que têm, além de suas páginas oficiais, o perfil de usuário "pessoa física". Em ambos os casos, não é permitido a essas pessoas incluir sua atividade como profissão, embora o exercício de artista seja regulamentado no Brasil desde 1978 (Lei Nº 6.533), bem como o de técnico de espetáculos. Nesta categoria, estão inclusos os produtores, assessores, iluminadores, maquiadores, fotógrafos, cenógrafos, figurinistas, roadies e todos os outros profissionais envolvidos diretamente com a realização de um espetáculo, seja ele um show, uma peça de teatro, um filme, um número de dança ou uma apresentação circense. Sei que o serviço oferecido pelo Facebook atinge o mundo inteiro, mas quero falar sobre isso pensando primeiro naqueles que somam ao país em que vivo.

O Facebook não gosta de artistas porque quando oferece ao usuário "pessoa física" (uso essa terminologia para não confundir com as opções página ou grupo) a possibilidade de incluir sua profissão, é bastante claro: "onde você trabalhou?". Aí o cara que tem 15 anos de carreira solo, bem sucedido e reconhecido até no exterior - apesar de completamente invisível para a mídia brasileira - entra num impasse: "digo que sou cantor/compositor/instrumentista/arranjador/produtor (vejam quantas profissões!) ou cito a minha própria página oficial de artista?"

O Facebook não gosta de artistas porque independentemente da escolha desse hipotético multiprofissional a informação será vista pelos demais usuários em uma construção frasal incoerente. Opte pela primeira opção, o resultado será: "Trabalha na empresa cantor/compositor", se o personagem do parágrafo acima for modesto. Se pela segunda, algo do tipo: "Trabalha na empresa Jimi Hendrix" (exemplo claramente ilustrativo). A saída "menos feia" encontrada por esses artistas é, então, não incluir qualquer informação a respeito de suas atividades. O problema é que isso limita de forma considerável o poder de alcance de seus nomes, que já são sistematicamente ignorados pelo Brasil afora.

"Trabalha na empresa ATRIZ"? plmdds :(

O Facebook não gosta de artistas porque exige que seus usuários trabalhem em alguma empresa, melhorem o PIB do país, movimentem a economia e mantenham as relações comerciais a todo vapor. Principalmente no Brasil, que é um país emergente e que... ah, deixa pra lá. A questão é: por que o artista tem que ser uma página, um perfil "institucional"? Onde fica o artista-sujeito? O ser humano, o cara que é casado, nasceu em tal lugar, é filho de tais pessoas e que quer, também, adicionar seus amigos sem ter que esconder sua profissão ao evitar uma incoerência semântica em seu perfil? É o Facebook que não gosta de artistas ou essa particularidade da rede social é reflexo de uma desvalorização sintomática e cultural destes profissionais em um planeta que valoriza mais as molas (econômicas) do que as alavancas (humanas)?

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Instruções de Cortázar

Já citei o Julio Cortázar por aqui, mas desta vez é o próprio quem se pronuncia. Se você ler esse trecho do conto "Manual de Instruções" e não sentir um leve arrepio é porque - vaticino - há algo de errado na sua vida:

Julio Cortázar pensando em como fazer para me deixar emocionado

"E não é mau que as coisas nos encontrem outra vez todo dia e sejam as mesmas. Que a nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio e que o romance aberto em cima da mesa comece a andar outra vez na bicicleta de nossos óculos, por que haveria de ser mau? Mas como um touro triste é preciso baixar a cabeça, do centro do tijolo de cristal empurrar para fora, em direção ao outro tão perto de nós, inacessível como o toureiro tão perto do touro. Castigar os olhos fitando isso que anda no céu e aceita astuciosamente seu nome de nuvem, sua resposta catalogada na memória. Não pense que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que haveria de dá-los? Virá somente o que você tem preparado e resolvido, o triste reflexo de sua esperança, esse macaco que se coça em cima de uma mesa e treme de frio. Quebre a cabeça desse macaco, corra do centro em direção à parede e abra caminho. Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar de cima nesta casa, com outras pessoas. Há um andar de cima onde moram pessoas que não percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de cristal. E se, de repente, uma traça pára pertinho de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olhe-a, eu a estou olhando, estou apalpando seu coração pequenino, e ouço-a: essa traça ressoa na pasta de cristal congelado, nem tudo está perdido. Quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina." 

(CORTÁZAR, Julio. História de cronópios e de famas. Civilização Brasileira, 2009)

sábado, 21 de abril de 2012

Tomás Antônio Gonzaga e a Teoria da Relatividade

"Os portais estão aí, nos resta encontrá-los." A física concebe o espaço-tempo como base para o estudo das duas grandes teorias publicadas por Einstein a respeito da gravidade: a Relatividade Geral e a Relatividade Espacial. Alterando a dinâmica proposta por Newton e sua mecânica clássica no que diz respeito ao funcionamento dessa força fundamental da natureza, as teorias de Einstein trouxeram à tona conceitos que hoje em dia já nos são perfeitamente compreendidos, embora a mecânica quântica já aponte certa obsolescência nas concepções einsteinianas sobre a vida, o Universo e tudo mais.

O espaço-tempo, nas teorias de Einstein, é compreendido como um esquema geométrico quadridimensional. Somado ao Tempo, o Espaço tridimensional forma o sistema de coordenadas que sustenta o Universo, como uma malha que suporta e é percorrida pelos corpos celestes em seus movimentos rotacionais, translacionais ou aleatórios. Em outras palavras, o espaço-tempo é uma estrutura curva e de certo modo maleável, tal qual um tecido.

Uma das pirações causadas pela Relatividade Geral é a ideia do "buraco de minhoca" (wormhole em inglês), termo cunhado pelo físico John Wheeler para explicar que o Universo pode ser percorrido por meio de atalhos através dessa malha espaço-temporal (!). O "buraco de minhoca" permitiria, portanto, que corpos atravessassem o espaço-tempo, viajando através dessas dimensões para frente ou para trás nessa geometria. É a tal viagem no tempo, tão explorada pela literatura e pelo cinema de ficção científica. Os "buracos de minhoca" são, dentro dessa perspectiva, noções topológicas, mas muito improváveis. Entretanto, há os que ainda acreditam em uma real possibilidade de atravessar o Universo, dizendo que "os portais estão aí, nos resta encontrá-los."

Eis aí um "buraco de minhoca". Entendeu como é? Não? Nem eu.
Vivo dizendo coisa parecida tanto em sala de aula quanto na minha vida cotidiana: as conexões estão aí, nos resta encontrá-las. Se acredito em viagens através de fibras de energia que podem ser distendidas em comprimento e largura, permitindo que corpos - inclusive humanos - transitem através desse continuum no espaço-tempo para qualquer ponto em qualquer marco temporal do Universo? Acreditar seria presunção; desacreditar, ingenuidade. Quanto à vida, "mistério sempre há de pintar por aí".

Por outro lado, acredito em "buracos de minhoca" entre áreas do conhecimento, entre linguagens, entre discursos. Não apenas acredito como posso prová-los (e o faço constantemente na minha prática em sala de aula). Por isso mesmo ainda reajo sorrindo à imagem abaixo: uma questão de Física de um livro didático cujo nome ou editora não me recordo agora, mas certamente envolve o ramo da óptica. Einstein também publicou estudos a respeito do comportamento da luz, mas enfim, chega desse papo.

Pois bem, o "buraco de minhoca" implícito na inocente questão conecta a óptica ao Arcadismo (também conhecido como Neoclassicismo), movimento literário surgido na Europa no século XVIII que chegou ao Brasil com certa fama e estimulou uma pequena produção nacional voltada para seus pressupostos estéticos. Talvez o poeta árcade brasileiro mais famoso, Tomás Antônio Gonzaga é autor da obra máxima do movimento no país: "Marília de Dirceu". Poema longo composto por liras, explora elementos biográficos da vida de seu autor (que, a propósito do feriado de hoje, participou da Inconfidência Mineira e converteu sua experiência na prisão em material poético da segunda parte de sua grande obra).

Dirceu ajoelhadinho declamando uma lira pra Marília *-*
Voltando à imagem: reparem que, embora perfeitamente contextualizada como indicador de um fenômeno óptico, a seta desenhada entre os personagens "sai" do rapaz, nomeado Dirceu, em direção à moça, de nome Marília. E o que é "Marília de Dirceu", se não poemas escritos por Dirceu (espécie de alter-ego de Tomás Antônio Gonzaga) para sua amada Marília (a jovem  Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, por quem Gonzaga realmente se apaixonou)? 

As conexões existem, nos resta encontrá-las. Quem diria que uma questão de Física redesenharia, de forma sutil, uma das mais belas histórias de amor contadas em nossa literatura? ♥

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Postagem inspirada no curta-metragem "Velázquez e a teoria quântica da gravidade", de Jorge Furtado. Além de falar sobre Física melhor do que eu, o filme ainda se conecta a uma postagem anterior deste mesmo blog ("Velázquez Popozuda"), provando novamente que há muitas minhocas estudiosas fazendo buraquinhos por aí. Principalmente se ninguém interrompe seus devaneios perguntando sobre a fita da Guta.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Recomendações para quem gosta de morrer

Para morrer, é fundamental ser honesto. Recuse qualquer prática corrupta, seja ela federal ou cotidiana. Não se renda à tentação de atirar o lixo no canto da calçada, ainda que a lixeira mais próxima seja o cesto verde-água localizado no canto direito de seu quarto. Improvise-as (as lixeiras) também nos bolsos traseiros de sua calça e esqueça-o (o lixo) nos bolsos quando colocá-la (a calça) para lavar. Informe a bela mulher do horto sobre o troco dado errado, principalmente quando representar prejuízo para a pequena empresa sequer regularizada, que a jovem não tem de sofrer reprimenda de seu chefe rude por uma desatenção momentânea percebida pelo cliente a tempo de manter tudo em ordem nas solitárias praias da Indonésia. A responsabilidade do louvável candidato nunca o fará merecedor do prêmio eterno se não for ridicularizada pelo menos uma vez em sua vida, tanto faz se de forma direta e agressiva ou sutil e adolescente.

É preciso, também, apaixonar-se. Preocupe-se com a dieta alimentar de sentimentos alheios, não ofereça promessas gordurosas e aja sem moderação no consumo compartilhado de doces e demais guloseimas. Prefira aquelas que vão lhe sujar os dedos, de modo que periodicamente eles devam ser vasculhados com a língua a fim de absorver satisfatoriamente todas as possibilidades de gozo presentes na sacarose. Apaixone-se, portanto, para que após certo tempo de consumo dos doces as cáries comecem a latejar por dentro dos dentes, deixando vermelho o entorno da gengiva e o trânsito sanguíneo congestionado. Enfrente, por fim, o consultório impecavelmente branco e submeta sua cavidade bucal à intervenção de uma pequena broca metálica a desenhar nos destroços de seu dente a representação esmaltada da vergonha e do desleixo.

Por último, quem gosta de morrer não deve buscar, em nenhuma instância, a morte. Em vez disso, cabe a este amante da arte de não estar vivo planejar indiscriminadamente, da duração do banho (dividindo o tempo em todas as etapas possíveis, considerando as partes do corpo, seus prolongamentos e suas subdivisões) ao curso de sua vida adulta contando com aposentadoria, iniciação na terceira idade e última semana ao lado da família antes de entregar-se ao repouso sem hora. A orientação mais adequada ao pretendente da morte compreende o bom funcionamento do mecanismo das decepções, cuja manutenção é feita através da lubrificação das engrenagens da esperança e da gratidão. À moda Parmênides, o sistema fará mover a alavanca-mestra do maquinário, apelidada pelos técnicos de "realidade", entretanto em direção oposta a do costumeiramente pretendido (ou seja, a daqueles que gostam de viver). Um erro estratégico desses pode pôr tudo a ganhar e, ganhando, o horizonte daquele que gosta de morrer converte-se em colorida imagem bidimensional típica dos melhores jogos de videogame já fabricados, em que a deliciosa jogabilidade entorpece o juízo e faz com que o jogador se esqueça dos outros, da vida, de si.

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(texto inspirado em contos de "História de Cronópios e de Famas", livro do escritor argentino Julio Cortázar, autor sobre o qual infelizmente não pude falar hoje)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Parteum e o rap transdisciplinar

Sou fã de rap e isso não é segredo. Meu primeiro flerte com o movimento hip-hop foi através de "O Homem na Estrada", clássico dos Racionais MCs, há uns bons anos. De lá pra cá, fui me aproximando cada vez mais dessa seara e os próprios artistas alcançaram um nível de excelência de produção e composição que deixa muito baluarte da MPB no chinelo. Mas isso é outra história.

Ou nem tanto assim. Afinal, Fabio Luiz (mais conhecido atualmente como o produtor e rapper Parteum, embora tenha sido skatista profissional por um tempo) é, talvez, o maior exemplo de excelência no gênero, em todos os sentidos. Além de bases criadas por ele mesmo - singulares em terra brasilis - as composições do rapper são nada menos do que tudo o que Edgar Morin vem dizendo há algum tempo sobre o aproveitamento da transdisciplinaridade. Fosse educador, Parteum certamente seria referência de conversão da teoria em prática. De todo modo, já o é (educador e referência) apenas fazendo música.

Poderia citar inúmeras de suas composições, mas preciso ser sucinto. Concentro, portanto, a postagem em torno do EP "A Autoridade da Razão", lançado no site da Trama Virtual em 2010. Para quem tem leituras de filosofia, já é possível perceber no título do álbum que o dono do petardo não está para brincadeira: "a autoridade da razão" é um dos principais conceitos do "Discurso Sobre o Método", de René Descartes. A propósito, nesta entrevista ele fala um pouco das ideias que permeiam seu trabalho. Deleitem-se.

Ao executar a primeira das sete faixas do EP, "A Força da Sugestão", é possível ouvir uma incrível dissertação a respeito do processo criativo, conduzindo o ouvinte a uma poderosa síntese em seu refrão: 

Parteum e seu rap: rhythm and philosophy
"Forma-Símbolo-Imagem-Ultrapassando a 
Margem-Fascinação-Viagem-Literatura". 

Em "1995/1998/2001" ele dispara: 

"O verso é como ônibus que lota
Antes mesmo de sair do ponto"

Ainda na mesma canção:

"Me chamam pelo nome mas não me conhecem
Me abraçam quando chego mas se perdem
Defendo teses em poucos parágrafos
Cenógrafo, do verbo iluminado
Polido feito pedras no período neolítico
Mudanças no algoritmo
Que explica cada emoção
Critico quem me quer ignorante
Tente ser relevante
Entenda que o papel aceita tudo, até mentira"

Não é viajar demais na maionese dizer que no trecho acima há pelo menos três áreas do conhecimento envolvidas com impressionante coerência. É material pedagógico, isso. E poético. Estou apaixonado.

Na faixa-título, que encerra o EP, ele mostra que pra ter autoridade na razão é preciso trabalhar também com o coração:

"Cheguei nesse planeta sob o signo da teimosia
Disseco filosofia pra mudar de rumo a prosa
Não imagine a cova, imagine estar além 
Rompendo o véu que nos separa do conhecimento pleno
Esqueça do veneno que nos separou na gênese
Ando por universos pesquisando outras versões de mim
Deus é todo mundo sorrindo ao mesmo tempo
Findo meu lamento quando lembro da força dos ancestrais
Meus batuques digitais são como o pé tocando a terra descalço"

Para encerrar, fica o clipe de "A Bagunça das Gavetas", também do mesmo EP, rodado inteiramente em Super-8. Atentem para o voo sobre a Biologia quando ele diz que "imaginárias linhas nos afastam feito prófase, metáfase, anáfase e telófase", mas não se prendam apenas a isso. Notem como é tudo muito além do que você, ingênuo leitor, esperaria:




sexta-feira, 6 de abril de 2012

Ser ou não ser (quando crescer)

Às vezes, ingenuamente, caio na besteira de perguntar a um aluno: "o que você quer ser quando crescer?". Embora fique incomodado, ainda não desenvolvi sensibilidade o suficiente para evitar essa pergunta tão funesta. Tenho uma boca grande e mal educada. Além de negar completamente a possibilidade de aquele ser humano já ser crescido em algum aspecto de sua existência (diria vários), é uma pergunta típica de vilão de fábula infantil, preparado para abocanhar o sonho do jovem interpelado com as mandíbulas vorazes do status quo.

Fazer essa pergunta é quase que promover um quiz macabro: "você TEM QUE dar a resposta certa", é o que a interrogação parece sussurrar subliminarmente. Esse gabarito costuma ser frio, sem vida, incolor. Há a variação paliativa, mas - como todo paliativo - não resolve nada: "com o que você gostaria de trabalhar quando ficar mais velho?" Cautela: o grande Edgar Morin mostra que preparamos os jovens para o trabalho, mas erramos feio ao não orientá-los para o ócio. Quando adulto, saberá esse cidadão aproveitar as folgas, os intervalos entre uma obrigação e outra com qualidade? Ou nunca estará satisfeito em seu tempo livre, adquirindo certos hábitos incomuns só para equilibrar com a vida proativa na empresa?

Por fim, existe algo já crescido e que não necessite mais de crescimento? Desconheço. Perguntar a um adolescente o que ele quer ser quando crescer é praticamente apontar uma chegada, um acabamento, um fim. Repara no vazio que é uma resposta dessas. Ele diz uma profissão qualquer e beleza, é isso aí, meus parabéns, cumprimos nossos papeis sociais de trocar informações sobre nossa única e intransferível razão de ser e estar neste planeta. Errr... não.

Como tudo já foi dito e só nos resta repetir, encerro com o magnífico poema de Drummond, que disse muito antes de mim e com muito mais grandeza. Porque eu ainda não cresci e estou muito pouco preocupado com o que serei quando tiver crescido. Se é que terei crescido algum dia.


Verbo ser

"Sai desse chão, Drummond! Isso não é coisa de gente grande! AFF"
Que vai ser quando crescer?
vivem perguntando em redor.
Que é ser? É ter um corpo, um
jeito, um nome? Tenho os três. E
sou? Tenho de mudar quando
crescer? Usar outro nome, corpo
e jeito? Ou a gente só principia a
ser quando cresce? É terrível ser?
Dói? É bom? É triste? Ser:
pronunciado tão depressa, e
cabe tantas coisas? Repito: ser,
ser, ser. Er. R. Que vou ser quando
crescer? Sou obrigado a? Posso
escolher? Não dá para entender.
Não vou ser. Não quero ser. Vou
crescer assim mesmo. Sem ser.
Esquecer.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Ai que vergonha da Amélia

Hoje, no dia oito de Março de 2012, está para ser sancionado um projeto de lei que aplicará multa a empresas que pagarem um salário menor a mulheres cumprindo a mesma função de homens. Enquanto isso, comemora-se mais um Dia Internacional da Mulher, e comentários de anos anteriores são reciclados: "é uma hipocrisia!", "dia da mulher é todo dia", "por que homem não tem um dia desses?" (em tempo: tem sim, mas é ridículo), "parabéns a todas, suas lindas!!!" (esse é oportunista), etc. Uns citam Madonna, outros Simone de Beauvoir; há quem convoque a Gaiola das Popozudas, ícone do "pós-feminismo-vanguardista-esquerdista-foucaultiano", e há os fronteiriços, trazendo à baila a imagem de Dercy Gonçalves. Felizmente, ainda não vi ninguém falar da Amélia, aquela que "era mulher de verdade". 

Entretanto, como tudo na história da humanidade é cíclico, esquecemo-nos de que a mulher já foi muito mais do que é hoje (doce ilusão da pós-modernidade). Refiro-me às prostitutas, figuras de destaque nas sociedades antigas, mais especificamente no Egito, na Mesopotâmia e na Grécia. Numa época em que à mulher eram negados quaisquer direitos sociais, a prostituta ou cortesã destacava-se de tal modo que lhe eram cedidas as instruções literárias, científicas e políticas, tornando-se portanto participante ativa da vida na comunidade. Só na Idade Média é que a situação inverteu-se e a prostituição passou a ser entendida como prática perversa, condenável, corruptora e tantos outros adjetivos barrocos lhe foram atribuídos pela Igreja Católica.

Atualmente, já conseguiram vencer alguma parcela mínima do enorme preconceito que recaiu sobre sua prática, mas ainda são execradas e incompreendidas. Isso sem mencionar a atenção que dividem com os travestis em um cenário já clássico dos preconceitos que o século XXI ainda tem que superar e da beleza que nossa época permite quanto às possibilidades de ser e se apresentar do humano (Baudrillard vai dizer, em 1990, que a cultura da contemporaneidade aponta sempre para o trans, em todos os aspectos da civilização [vide o genial cartunista Laerte]).

Digna foi a atitude do rapper paulista Emicida ao transformar o videoclipe de "Rua Augusta", música de sua mixtape "Emicídio", em um breve e sofrido documentário sobre o cotidiano de uma prostituta que, mãe de um garotinho, deixa-se flagrar pela câmera entre choros, cuidados maternos e esperas à esquina. Porque é fácil ser feminista empunhando um copo de cerveja enquanto dá uma tragada no cigarro e muito cômodo ser homem (alguns diriam macho) dedicando trinta segundos para elogiar a mesma mulher que na estreita lógica machista não deveria dirigir carros nem empresas, mas quem se importa com o semelhante vivendo à margem imprimindo na pele e na alma a dolorida imagem de alguém que, em outros tempos, seria a única a merecer reconhecimento perante a sociedade?

Fica também outra dica musical, esta mais bem-humorada: o disco "Estudando o Pagode", do incomparável Tom Zé, no qual as letras levam a curiosas e pertinentes reflexões a respeito de como a sociedade brasileira promove um culto velado à misoginia, reprimindo a mulher através de inúmeras justificativas antropológicas sem o menor cabimento.

As prostitutas clamam por dignidade

"Desde criança a mulher
Enfrenta aquela
Dissimulada agressão.
Eram descarados provérbios maldosos,
E duros, naquele tom brincalhão.
E na dureza do escárnio
Se o amor-próprio se parte...

Pode interromper no corpo
Aquela natural vibração da carne,
Gozo da mulher, que se o cara
Não doar atenção - é tarde."
(trecho de Vibração da carne)